"Na semana passada li na imprensa uma frase terrível. A frase era de um pescador sobrevivente do naufrágio da traineira Delfim, ao largo da Costa da Caparica, num destes dias de mau tempo que têm marcado um Inverno especialmente rigoroso. Uma onda gigantesca foi ao encontro da embarcação, esta virou-se, os pescadores ficaram debaixo, um desapareceu logo, outros dois deram as mãos. Um destes, de nome Pedro, tinha 25 anos; o outro, 62.
Ao fim de uma hora e tal, o mais velho morreu. E sobre o que depois se passou, Pedro disse a seguinte frase:
– Senti que ele estava morto mas não lhe larguei a mão, para não ficar sozinho.
Esta frase ficou a matraquear-me o espírito. «Não lhe larguei a mão para não ficar sozinho». Para aquele homem perdido no mar, a companhia de um morto era preferível à solidão.
Lembrei-me então de uma história igualmente terrível contada há anos por Clara Pinto Correia. Escrevia ela que, quando trabalhava numa instituição científica nos Estados Unidos, uma colega que ia fazer uma experiência qualquer com um cadáver lhe disse:
– Ao menos vou tocar em pessoas.
A ideia arrepia. Em certas profissões, as pessoas atingem um tal ponto de solidão que a dissecação de um morto se pode transformar num momento agradável porque permite o contacto com a natureza humana.
Em certo sentido, esta história é uma metáfora. Nas sociedades contemporâneas, o problema da solidão tornou-se uma questão central. A solidão das pessoas sozinhas – e a solidão, mais profunda, das pessoas acompanhadas.
A civilização tem evoluído no sentido da desumanização da sociedade, do individualismo, da diminuição das relações entre os humanos em benefício das relações com as máquinas – e isso está a provocar distúrbios sociais de dimensão incalculável.
O meu pai nunca teve televisão. Ou melhor, só admitiu uma televisão em casa mesmo no fim da vida, porque dizia que o televisor era um aparelho diabólico que impedia as conversas em família ou sabotava as reuniões de amigos. E dava exemplos: recebera o convite para ir jantar a casa de alguém, tinham-se posto todos a olhar para a televisão, a páginas tantas começaram a levantar-se, despediram-se – e o ‘encontro’ acabou assim.
Na primeira vez que veio a Portugal depois de um longo exílio na Europa passámos férias juntos numa casa na serra da Gardunha – uma casa alugada a um guarda-florestal – onde no centro da sala havia uma lareira. Como estava frio, acendíamo-la todas as noites. E ficávamos a conversar, olhando para as chamas, que faziam desenhos sempre diferentes.
Um dia ele disse:
– A lareira é a nossa televisão.
E era. O fogo proporcionava imagens fascinantes, de uma grande variedade. Mas entre a lareira e a televisão existia um abismo: a lareira favorecia a conversa, a presença da lareira estimulava o espírito, enquanto a televisão monopoliza a atenção, mata as conversas, quebra a afectividade, gera a solidão. A televisão estabelece uma relação unívoca entre o espectador e o aparelho. Que seca tudo à sua volta.
O meu pai viveu a era da televisão – à qual resistiu sempre, como disse – mas já não viveu a era dos computadores. Ora, esta potenciou brutalmente a solidão introduzida nas sociedades modernas pela TV.
É que, enquanto a televisão ainda pode ser vista em família, em ambiente familiar, o computador é um objecto eminentemente pessoal. Na televisão as pessoas podem ver juntas um filme, um telejornal, uma reportagem – e podem ir comentando o que vão vendo. Embora a regra geral seja o silêncio, de vez em quando aquilo que passa no ecrã provoca uma observação, um comentário.
Mas com a entrada dos computadores na vida das pessoas, nem isso sobreviveu. O computador é de utilização individual, não se usa em grupo. Nos serões familiares, é hoje vulgar ver-se cada um dos membros da família agarrado ao seu computador, mergulhado na sua particular solidão, relacionando-se com um aparelho, mexendo em teclas de plástico.
O computador afastou ainda mais as pessoas umas das outras – criando o homem-objecto ligado à máquina, que serve para tudo: para trabalhar, para conversar com outras pessoas, para jogar, para encomendar compras no supermercado, para movimentar a conta bancária, para fazer sexo (virtual, claro).
No limite, o ser humano tornar-_-se-á um robô que não anda, não fala com ninguém, não vai à rua – e passa 24 horas agarrado ao computador, com os dedos martelando no teclado e os olhos pregados no ecrã.
A mim, isto assusta-me. Mas é certamente um problema meu. Porque as novas gerações nem sequer percebem o problema. Acham normal passar o dia presos ao computador. E, quando não estão no computador, estão a ver televisão, a jogar playstation ou então ao telemóvel, enviando e recebendo mensagens.
E muitos adultos também já estão infantilizados. Há uns meses fui com uns colegas ao estrangeiro. Quando chegámos ao hotel, já noite alta, convidei-os para uma bebida no bar. Tinha sido uma viagem longa de avião e apetecia-me descontrair com uma boa conversa à frente de um copo de whisky – bebida que aliás só me sabe bem em condições especiais.
Sentámo-nos. Encomendámos três whiskies com água e gelo, o empregado pousou os copos na mesa e eu preparei-me para começar a conversa. Disse duas palavras para o ar mas não obtive resposta. Olhei então melhor para os meus companheiros de viagem. Um estava completamente absorto a fazer um jogo no telemóvel, com os olhos vidrados no pequeno ecrã, o outro, também de telemóvel em punho, carregava febrilmente nas pequenas teclas, possivelmente respondendo a mensagens que tinham chegado durante a viagem.
Desisti da conversa. Sozinho, lembrei-me do meu pai e dos serões à lareira, que era «a nossa televisão». Como estamos já tão longe deste tempo! Como nos tornámos tão tristemente solitários, cada um no seu cantinho com o seu telemóvel ou o seu computador – ‘computador pessoal’, como ele próprio se intitula.
Estamos a construir uma sociedade monstruosa, desumanizada, destituída de alma, onde as relações humanas são cada vez mais ténues e utilitárias.
Adquirimos a última maravilha tecnológica convencidos de que, com isso, vamos tornar-nos mais felizes. Mas vamo-nos tornando apenas mais sós. Deixámos de ter vida colectiva. A sociedade é um somatório de milhões de existências individualizadas. Não percebemos a importância da presença humana.
Ou melhor, só a entendemos nos momentos de desespero – em que a companhia de um cadáver pode ser bastante para não nos sentirmos sozinhos."
Este texto em particular, é realmente 'qualquer coisa'..
ResponderEliminarNa Alemanha há um canal que transmite lareira o dia inteiro. Incluindo os sons do crepitar da lenha.
ResponderEliminarNunca tive lareira em casa portanto não seria de esperar que a versão televisiva me fosse cativar mas mesmo assim fiquei a pensar em mais este substituto instantâneo de uma coisa tradicional que a minha avó condenaria apaixonadamente.
Hoje, há tantas casas "sem lareira"...!
ResponderEliminarÉ por sentir esta aridez dentro da minha casa que tenciono a curto prazo ir à MEO anular a minha assinatura de televisão e internet durante pelo menos um mês. Imagino os meus filhos, pré-adolescentes, aflitos, quero ver como é que escolhem reagir...
ResponderEliminarE por cá ninguém vê televisão à hora das refeições, temos um unico aparelho em casa para televisão e consolas, um computador na saleta para todos. E montes de livros, nos quais eles não pegam a não ser ao adormecer.
Para grandes males, grandes remédios...
Talvez a humanidade do Pedro tenha querido dizer: "não lhe larguei a mão, para [ele] não ficar sozinho." bjs, Cecília
ResponderEliminartive quase um ano sem televisão e quando o verbalizava haviam reacções de estranheza. o objecto voltou mas apenas para passar as fitas, já que o andar atlântico não suporta um projector. sinal de televisão bastante mau, com nota máxima para a RTP2. :-) já o computador...aí sim sou completamente apanhada. mas movo-me pela palavra "equilíbrio".
ResponderEliminarsancha
ResponderEliminarengraçado este tema porque tenho andado a pensar sobre o corpo, o tempo e a morte.
gostei da historia do pescador que nao largou a mao do velho e nao acho morbido nem estranho. Primeiro a ligação afectiva que podiam ter um com o outro justifica o apego e segundo mesmo que nao se conhecessem um "corpo" é sempre um corpo, o fisico que nos liga a este mundo.
o pescador nao queria morrer e nao queria ficar sozinho, se largasse a mão perdia a ligação.
A historia das autopsias tb é gira. Há pouco tempo pedi para examinar 1 corpo de um morto no sitio onde trabalho. Abri o saco e estive a ver a pessoa que ja la estava ha 3 dias.
Esta nossa ligação com a morte parece me mais que tudo uma ligação com a vida, e não a vejo como uma coisa "da solidão" mas sim como uma necessidade de compreender e de sentir as cosias que existem.
qd ele diz: "ao menos vou tocar em pessoas" acho engraçado o uso da palavra "tocar" .. mais 1 x esta necessidade de proximidade fisica, proximidade real, objectiva .. nao me choca ser com um morto. claro que com 1 vivo seria bem melhor ;) mas entre trabalhar com maquinas ou com pessoas (mm que mortas) nao te parece mas humano trabalhar c pessoas?
anyway .. eu sei que o tema deste post é a solidão e estes 2 exemplos sao apenas metaforas mas estou como o woody allen : "i only read books with the word death in the title" hahahahahhahahahha.
(ps. tenho 5 televisões em casa e nao me lembro da ultima x que liguei alguma ;) acho que nem o sei fazer ;)
bjinho gd e thank u 4 the food 4 thought
(the last freaky comment is mine .. )
ResponderEliminarbjinho gd xxx
Num mundo cada vez mais tecnológico, cada dia tenho mais saudades das coisas analógicas.
ResponderEliminarFoi uma delícia encontrar este blog via "criarte". Irei acompanhando.
"O artífice de outrota tinha de trabalhar; o actual tem que fazer uma máquina trabalhar. É um simples capataz de escravos de metal; torna-se tão embrutecido como um capataz de escravos, mas menos interessante(...)" Herótrato de F. Pessoa,
ResponderEliminarontem adormeci a ler isto e acho que se encaixa na perfeição :)
Beijinhos do Carlos (amigo do Jorge Vassalo)