o legado da nossa passagem do JPC na Folha
Vou esquecer as mensagens de celular, porque elas são um tipo de linguagem tribal.
LEIO O "Daily Telegraph" com o café da manhã e encontro em letra de forma uma das minhas múltiplas lamentações. Falo de cartas. Da ausência de cartas em nossas vidas cada vez mais rápidas, cada vez mais áridas. Conta Michael Deacon, colunista do jornal, que as únicas cartas que recebe são as do banco. Linguagem técnica, linguagem tétrica, sem a grandeza das grandes missivas. Porque essas, as cartas de amigos ou inimigos, amores ou traidores, deixaram simplesmente de aparecer no radar.
Sinto inveja de Deacon. O banco, o banco, o meu reino por uma carta do banco. Infelizmente, nem isso: para poupar dinheiro e comprar o uísque das crianças, recusei o serviço tradicional, mais caro, e passei a fazer depósitos ou transferências pela internet. Aqui a casa, os correios não vêm mais. Já pensei em escrever cartas a mim próprio, meditações estoicas na linha de Marco Aurélio, só para dar uma alegria ao carteiro. "Senhor, finalmente uma carta!", diria ele , como se tivesse encontrado a Atlântida perdida. Mas os dias passam e ninguém escreve ao coronel.
Recebo o que todos recebemos, sim. Vou esquecer as mensagens de celular, porque elas não pertencem propriamente à linguagem escrita. São, digamos, uma forma de linguagem tribal, que Darwin teria integrado nas suas investigações antropológicas para provar as nossas origens símias. Os brasileiros têm a palavra perfeita para designar a natureza ofensiva, letal, quase bélica, dessas palavras rupestres: "torpedos". Abençoados sejam, irmãos.
Recebo "torpedos" como os meus antepassados recebiam as flechas amedrontadas dos índios. E recebo, em quantidades que me abismam e entediam, e-mails. Vantagens? Mil, admito. Desvantagens? Mil, admitam. O problema do e-mail é a sua evidente facilidade: em minutos, escrevemos e esquecemos. Pior: apagamos. Ou alguém apaga por nós. Alguém nos apaga a nós.
As cartas tinham outro tempo. Corrijo. As cartas tinham outro s tempos. O tempo de pensar. O tempo de escrever. O tempo de lacrar, enviar. Esperar. Era uma forma de respeito. Mesmo que fosse uma forma de despeito. Mas as cartas eram formas únicas de comunicar ao outro a importância do outro. Como se cada carta fosse, por si só, uma declaração de humanidade. Parei para te escrever. Parei para te enviar esta carta. E estarei à espera que me escrevas de volta, quando pensares em mim e parares por mim. Brás Cubas não deixou a ninguém o legado da sua miséria. Mas tenho a certeza que, algures na sua existência imaginária, deixou cartas. E as cartas são o legado da nossa passagem.
Da nossa passagem, vírgula, da passagem dos outros. Michael Deacon, em sentença primorosa, declara: esqueçam o romance, a morte do romance e outras teses fúnebres, que alimentam o ego e o eco de certas múmias acadêmicas. O verdadeiro gênero literário que o século 21 começará por enterrar será a carta.
O empobrecimento literário pr e sente só pode ser medido pela riqueza literária passada. Deacon cita exemplos: as cartas de Kingsley Amis transportam o melhor de Amis. A ironia condensada, quase epigramática, que é possível encontrar em outros sátiros epistolares, como Philip Larkin ou Evelyn Waugh.
Concordo. E digo mais: nunca leiam nenhum autor, nunca vejam nenhum pintor, nunca escutem nenhum compositor sem começar pelas cartas. O melhor de um artista está na forma desarmante e desarmada como ele se confessa. Depois de ler as cartas de Isaiah Berlin aos pais; as cartas de Van Gogh ao irmão; as cartas de Wagner à mulher, partimos para a obra com a armadura posta. Não seremos enganados. A alma não mente.
Até agora. Até hoje. Até quando? A alma começará a mentir no momento da sua gradual invisibilidade. Escrevemos muito. Escrevemos mais. Escrevemos até demais. Mas escrevemos em areia úmida, antes da maré subir e tudo levar. O historiador futuro saberá pouco sobre a vida inte ri or dos seus antepassados. Dos nossos contemporâneos. De nós. Os amores já não se comunicam por carta. Os desamores também não.
Famílias inteiras deixarão de ser cumplicidade, tragédia ou intriga. Serão estatística nos registros oficiais. Que medos, que sonhos, que conversas banais terão os homens banais do século 21 aos olhos interessados dos homens do século 22? Silêncio. Tudo que teremos para mostrar será o silêncio das nossas vozes apagadas. E nenhum saldo bancário servirá para nos redimir ou explicar.
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