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18 abril 2012

a consertação da dignidade humana



é 'difícil' deitar fora uma vida. e não uso a palavra 'desafio' que costumo sempre trocar sempre pela 'difícil' por que é sempre triste e deplorável dar a quem precisa os objetos que um dia foram de Alguém. sempre que tenho saudades de quem me construiu gosto de alcançar a memória para eternizar o aroma dos dias vividos. perguntava-me porque seriam precisos tantos meses para partilhar as camisolas de lã compradas no falecido alfaiate Piccadilly da Rua Garret, do homem das mãos de veludo. o giz que antecipa as costuras dos fatos não dura para sempre, assim como não dura para sempre o movimento das peças que se decompõem num armário que já não abre as portas.

depois de mais de doze meses sou chamada à casa que me viu crescer. é preciso coragem para libertar as peças de quem me gerou vida, na certeza de que o tempo é o bem mais precioso da nossa passagem pela terra.

tropecei muitas vezes para ver este filme e quase a sair de cartaz, a procura da concertação de tanta coisa que nos acontece e não conseguimos encontrar explicação. o que fomos um dia, o que mundo esqueceu e a inércia da memória que insiste em esquecer quem um dia dava manivela às rodas do tempo da cidade. as estações, a importância das estações e das paragens que nos entregam respostas.

são vidas que merecem ser recordadas, cerca de oitenta e cinco mil idosos que estão esquecidos na cidade. essas vidas que guardam histórias saberes, urgentes a redescobrir e a partilhar com os que hoje dão roda à manivelas dos relógios de Lisboa. já sabem que não me imagino reformada e que me vejo a trabalhar até o Universo me levar, mas não estarei eu também a ser chamada num tempo tão importante para a salvação da humanidade, ao resgate urgente da dignidade humana?

neste filme, onde levei o coração da minha Mãe a desanuviar a entrega dos objetos de uma vida do homem a quem dedicou a vida, remato o dia com a perfeição das horas. um dia onde me é prometida uma chave, assim como quem pede uma solução ao Universo.

e se o bairro nos fala de amor, é no encontro da beleza de três descobridoras de histórias, três descobridoras de olhos grandes, que ouso o puxar o fio, a partilha da passagem do tempo, horas que prometem um voo a todos os corações disponíveis da cidade.

2 comentários:

  1. é atónitos que ficamos quando te lemos: "remato o dia com a perfeição das horas. um dia onde me é prometida uma chave, assim como quem pede uma solução ao Universo.".
    deste corda ao tempo e tornaste eterna e prolongada a vida d' "os objetos que um dia foram de Alguém". bj

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  2. Acho que era difícil teres escolhido melhor. Não sei o quão difícil é entregar os objectos de quem nos gerou, de facto, não sei sequer o que é perder alguém de tamanha importância. Mas sei o que é a partida de alguém demasiado significativo e o quanto nos agarramos aos seus objectos, à sua casa, ao seu trabalho. Foi preciso muita coragem e terminar com o Hugo só pode ter deixado a tua mãe com um sorriso e uma lágrima na cara =)

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