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13 maio 2012

'Seria muito infeliz se me dedicasse só à música'

pelas palavras da minha amiga Laurinda Alves,

a homenagem ao Bernardo Sassetti na Basilica da Estrela foi um momento inesquecível para todos os que estivemos presentes. Pedro Burmester e Mário Laginha tocaram com lágrimas e dor, paixão e entrega, algumas composições felizes do Bernardo. Muito comovente. A orquestra, os coros e os músicos da família que tocaram e cantaram com inspiração foram igualmente sublimes. A Basílica desabou em palmas durante longos minutos. Uma eternidade. O Bernardo encheu as nossas vidas de vida. E de música, claro. No fim encontrei uma família de amigos também eles muito próximos da família do Bernardo, que me passaram o link de uma entrevista que eu própria fiz ao Bernardo em 2006. Aqui fica.

entrevista à revista "XIS" saída com o PÚBLICO de 18 de Março de 2006
'Seria muito infeliz se me dedicasse só à música'

A sua música, inspirada e inspiradora, transborda de emoções. Não gosta da exposição mediática e protege-se dos excessos. Conserva a mesma pureza de coração que tinha quando começou a tocar e a compor. Enche plateias e é sempre aplaudido de pé.

Está com um ar tranquilo e feliz. De onde vem a sua felicidade?
De muitas coisas... Dos projectos muito entusiasmantes que tenho pela frente, mas acima de tudo por ter encontrado o equilíbrio entre o trabalho e a coisa mais importante na vida, que é a família.

Fala do amor?
Sim, naturalmente do amor e da partilha. Mas penso mais do que falo. Tem sido muito importante para mim a paternidade, olhar para as minhas filhas e perceber muito mais coisas da vida. Elas ajudam-me a relativizar outras que me preocupavam no passado.

O que é que mais o fascina na paternidade?
O que me fascina realmente é tudo o que já foi escrito de bom, de positivo e de construtivo, mas há um aspecto que eu gosto muito, que é rever-me naqueles seres tão fascinantes e que me podem ensinar tanto. Através das minhas filhas consigo, pela primeira vez na minha vida, ter tempo para pensar um bocado nas memórias que tenho do passado e que muitas vezes esqueci. A memória dos tempos familiares e das coisas que me aconteceram na infância. É bom chegar a um ponto da nossa vida em que percebemos que o trabalho é interessante mas existem coisas muito mais importantes.

O trabalho não nos completa como seres humanos?
De maneira nenhuma.


Trabalha muito?
Sim, mas seria muito infeliz se me dedicasse só à música ou ao trabalho. Chega a ser angustiante, porque a música é uma forma de representação de qualquer coisa que está cá dentro. Do imaginário abstracto ou de memórias que não consigo exprimir por palavras. Isto parece-me evidente para qualquer pessoa que se dedique à composição.

Fala de memórias e dessa massa abstracta que são os sentimentos e as emoções?
Exactamente. O que acontece é que este processo de desenvolvimento musical relativo à nossa vida pode ser muito angustiante e, sobretudo, pode fazer de nós seres desumanos. Há uma expressão muito engraçada que é o "Bernardo eremita" que é um ser que se esconde numa concha e sobrevive sozinho.

Alguma vez se sentiu "Bernardo eremita"?
Sim, na altura da minha aprendizagem. Hoje estou cada vez mais convencido de que tinha interesses muito especiais relativamente às pessoas com quem me dava e sei que vivi com uma obsessão durante anos: aprender não só a linguagem musical mas, sobretudo, a linguagem do jazz que é tão difícil em Portugal. Conseguir ter acesso à informação naquela altura, nos princípios dos anos 80, não foi nada fácil.

Quantos anos tinha?
Comecei, realmente, com 14 anos.

Fala em obsessão e gostava que explicasse melhor porque usa essa expressão.
Pois, é um bocado forte mas às vezes utilizo termos que podem parecer excessivos. Era uma obsessão porque eu vivia com as imagens daqueles sons diariamente. Não só ao piano, sozinho, como na rua a ir para o liceu. Vivia diariamente com a ideia de que um dia ia conseguir tocar aquela música.

Que música era essa? Era só o jazz que já conhecia ou era a música que tinha dentro de si?
Acho que eram as duas mas, nessa altura, eu não tinha capacidade para pensar muito bem naquilo que queria. Até cheguei a uma fase em que me apetecia desistir da música. Foi num período em que estagnei um bocado. Era preciso dar um salto qualquer.

Quantos anos de estudo musical já tinha?
Cinco anos, mais ou menos. A minha forma de estudar foi muito pouco ortodoxa porque tive sempre professores particulares.

Foi uma aposta do seu pai ou da sua mãe?
Foi uma aposta que eu decidi enfrentar. A música sempre fez parte da vida daquela casa, dos meus irmãos e, sobretudo, do meu pai. Ele sempre tentou transmitirnos o gosto pela música e pela sua compreensão. Lembro-me de passar muitas horas sentado ao lado do meu pai com ele a explicar-me a música e o contexto de algumas óperas enquanto eu via e seguia partituras muito antigas que tinha lá em casa.

E isso era feito em esforço?
Era fascinante e até era iniciativa minha. Depois, naturalmente, vieram os ensinamentos do meu pai. Tudo isso faz parte das minhas memórias de família.Quem é que percebeu primeiro que tinha um grande talento?
Ninguém...

Até hoje ninguém? [risos]
Era difícil, sabe?! Levou muito tempo a todas as pessoas da minha família, pais e irmãos, a perceber que a música já fazia parte da minha vida.

Quantos são ao todo?
Somos oito irmãos. O meus pais têm 25 netos. Somos uma família grande.

Todos ligados à música?
Não, só o meu irmão Francisco, também em piano. Os meus outros irmãos têm profissões sérias [risos].

O seu pai tocava?
Não tocava mas sabia e sabe muito de música.

Tem bom ouvido também?
Muito bom ouvido e uma memória invejável das coisas, dos lugares e de textos que leu há mais de 50 anos. Tudo isso se nota na forma como ele nos transmite as coisas e os conhecimentos.

Voltando à questão que ficou por responder, quem percebeu primeiro que tinha talento?

Não sei, realmente não sei, porque aquela música era uma novidade naquela casa. O jazz era uma música pouco ouvida e realmente eu sempre quis apostar e lancei-me mesmo para a frente, quase até cair!

Ainda hoje o jazz não é uma música fácil para os portugueses, pois não?
É difícil em qualquer parte. É preciso tempo para a compreender. E, depois, também acho que a música hoje em dia aparece diariamente nas nossas vidas de uma forma inexplicavelmente banal.

Ou seja?
Está em toda a parte. Façamos nós o que fizermos teremos sempre música a acompanhar... qualquer coisa! Música na rua, música nas lojas, nos elevadores, nos aeroportos, em viagem. Há música a mais para dar, emprestar ou vender.

E essa banalização perturba ou recria a própria música?
Eu acho que é muito perturbante, especialmente para um músico. Até na forma como a música é ouvida, muitas vezes aos altos berros, transforma-a facilmente em poluição sonora.

Distorce o valor da própria música?
Claro, é como tudo o que se banaliza em excesso. Hoje em dia também se escolheu o sexo, por exemplo, como forma fácil de chegar às pessoas. O sexo ligado ao amor, à partilha e à entrega entre duas pessoas tem tanto de grandioso como pode ter de banal, pela forma simplista como hoje nos é exposto.

É interessante este salto que deu agora da música, que é sagrada para si, para o sexo e para a relação a dois. A música e o amor com entrega são o que há de mais sagrado para si?

Completamente. Fiz este paralelismo porque são coisas sagradas mas muito banalizadas. Hoje em dia escolheu-se banalizar o sexo. O sexo já não é tabu e fala-se dele como se fala de uma refeição de fast food.

E isso perturba-o?
Muito, porque são elementos na nossa vida que são especiais. São cantinhos muito especiais da nossa vida, que devemos preservar. O mais importante para mim é o equilíbrio das coisas.

Consegue ter um discurso afectivo mas não moralizante.
Ainda bem. As pessoas fazem da vida o que quiserem, vêem o que quiserem e seguem o que entenderem.

Mas você preferiu fazer do amor e do sexo um cantinho sagrado da sua intimidade.
Sim, completamente. É muito difícil, senão impossível, conceberme numa situação de sexo sem amor.

Diz isso também por pertencer a uma família católica?
Não, de maneira nenhuma. Digoo porque é mesmo o que penso e sinto. Tive uma educação católica, que respeito, mas tenho a minha própria fé e não sou um praticante exemplar. Faço-o à minha maneira.

É mais pela ética do que pela religião, digamos assim?
Sim. Os princípios éticos acompanham a minha vida sem que eu tenha de pensar muito sobre eles ou identificar a religião à qual pertencem. São princípios positivos em que acredito.


Mas quem o ouve e quem o conhece sente que há uma mística na sua música e na sua atitude na vida. Qualquer coisa de profundamente espiritual. Você é uma pessoa espiritual?
Acho que sou uma pessoa comum e tento procurar cada vez mais o essencial na música que faço. É curioso pensar que muitas vezes as pessoas confundem a espiritualidade com a tristeza. Um tema lento, por exemplo, não tem que ser necessariamente triste. Eu não acredito em tristeza na minha música. Há quem diga que o Ascent ou o Alice são músicas profundamente tristes mas eu retirava a palavra triste.

E classificaria como?
Acho que é, de facto, uma procura interior minha, uma procura dos sons e de uma representação de qualquer coisa que tenha a ver com a minha vida, com o meu interior e isso, no meu entender, afasta-se muito do sentido de tristeza.

É uma coisa intensa e verdadeira, mas não necessariamente triste?
Intensa é, verdadeira não sei, nem posso saber com certezas... O que acontece é que existem várias formas de energia que têm muito a ver com esse lado espiritual que mencionou há bocado, mas para mim não há nada mais precioso do que o silêncio de uma meditação. Olharmos para dentro e pensarmos em quem somos e o que estamos aqui a fazer. Isso é muito importante. Eu considero muitas vezes que a música que faço é inútil para os outros, sinto-me muito pequeno no universo artístico, apesar de o viver intensamente todos os dias.

Sabe que tem feito muito pelo jazz, pois as pessoas identificam o jazz e o piano consigo. De alguma forma você arredondou as arestas que o jazz tinha nos nossos ouvidos. Hoje em dia todos o ouvimos com imenso prazer, mesmo quando toca aquilo de que nem todos gostamos.
Eu tenho consciência de que existem pessoas que seguem a minha música e isso é-me muito gratificante. Mas, realmente, isto é uma questão difícil de explicar porque, como pessoa e como músico, sinto-me mesmo muito pequeno. Quero dizer, muitas vezes tenho dificuldade em acreditar que a minha música possa chegar realmente às pessoas e é por isso que falo da inutilidade da música que componho e interpreto, embora isso não queira dizer que não haja pessoas que não se identifiquem com a minha música.

Só se sente pequeno quem é verdadeiramente grande. É uma coisa que vem nos livros.
Pois, o que hei-de dizer sobre isso? Nada, mas tem tido muitas provas de reconhecimento do seu talento. De cada vez que dá um concerto e o aplaudem tem de sentir isto... Digamos que não sou a pessoa indicada para falar sobre isso...

Até uma certa altura a sua música era uma espécie de sequência, uma evolução dentro de uma linha muito definida, mas agora com estes dois últimos discos, e especialmente com o Alice, que é uma musica feita para um filme denso e triste, a sua música tomou outros caminhos?
Neste momento, a música que componho está muito ligada ao cinema, à imagem e à fotografia, que são as artes visuais que mais me acompanham. Interessa-me imenso tentar compreender o poder de sedução das imagens. Gosto também da ideia de histórias contadas em três partes e existe, de facto, uma técnica e uma evolução muito interessante na história do cinema. Há um aspecto decisivo que é a montagem moderna de um filme. As histórias contadas através de pequenos fragmentos que se vão juntando. É interessante transpor estas ideias para a música.

O que faz com que a música seja um bocadinho mais avulsa, também?
O meu interesse na música é tentar contar uma história, tanto na comunicação com os músicos como com o público, porque é uma comunicação totalmente feita no momento, apesar de ensaiarmos os temas principais. O improviso é qualquer coisa de tão espontâneo que talvez seja um dos grandes exemplos de humanidade na música. Quero dizer, é uma sensação de desafio constante em que todos nós estamos a tentar pôr cá para fora as nossas coisas do passado e do presente, e isso é muito enriquecedor e sempre diferente.


Como foi o processo de criação da música para o filme Alice?
O Alice foi muito especial. Tive um contacto muito forte com o realizador Marco Martins. Fui à procura das notas do tema e das entradas de música na presença do Marco e foi a primeira vez que isso aconteceu ao longo das dez bandas sonoras que compus até hoje.

O facto de Alice ser um filme tão intenso, tão duro, que conta a história de uma filha que desaparece e nunca mais aparece, que ninguém sabe se está viva, se está morta, tocou-o muito?
E de que maneira! Foi um processo muito doloroso, aliás como escrevi no texto para o CD. Foi muito marcante e tive de viver com aquelas imagens durante muitas semanas, enquanto procurava as notas do tema principal.

Chorou?
Sim, isso chegou a acontecer algumas vezes. E chorava pela história, pelo esforço criativo, ou chorava quando olhava para a sua fi lha? Chorava quando eu próprio começava a meditar com a música, quando conseguia estar realmente sozinho com a música e, no fundo, com o sentido real deste filme. Tudo aquilo é uma dor muito poderosa e espero nunca passar por isso, pois é inimaginável para uma pessoa que tem filhos a ideia da perda ou da morte de um filho. Pior do que a certeza da morte é a incerteza do desaparecimento... Penso que é preciso ter muita fé e muita força para lidar tanto com o desaparecimento como com a morte. No caso de Alice, tentei encontrar um equilíbrio entre a música que, de alguma forma, mostrasse essa angústia.Há partes muito angustiantes naquela banda sonora e a inserção de alguns sons violentos da cidade pareceu-me apropriada.

É como uma coisa que grita no meio da música?
Sem dúvida. Lá longe, aparece a nota de um clarinete como se fosse a voz da Alice, sempre presente mesmo estando desaparecida. O que tentei fazer foi encontrar o equilíbrio entre a angústia de um pai, o desespero de uma mãe, a procura e a esperança. Foi isso que me deu muita força para escrever aquela banda sonora. Agora estou a trabalhar muito nela porque vou fazer o Alice num espectáculo ao vivo no Teatro Maria Matos, no dia 6 de Abril. No dia 31 de Março é o Ascent, no São Luiz.

Ao longo destes anos todos o que é que aprendeu sobre si próprio através da música?
Essa pergunta é muito difícil. Acho que aprendi que existe em mim um lado egocêntrico muito forte. Quando fazemos música que tentamos que seja, não totalmente mas de alguma forma, verdadeira, isso faz-nos centrar em nós próprios.

Fala de música com verdade e isso remete para a lendária questão de saber o que é a verdade?
Isso será sempre uma questão filosófica difícil de definir e compreender. Aprendi que a contenção é a palavra-chave nesta fase da minha vida. Já senti a música como um divertimento ou uma distracção para as pessoas mas, neste momento, a coisa mudou totalmente de figura.

Como é que a define agora?
Exactamente como uma necessidade emocional muito forte de transmitir coisas que tenho cá dentro. Coisas que nunca conseguirei expressar por palavras. É difícil explicar, sabe?! Percebe-se o que quer dizer. Muitas vezes sinto a música como se de um desabafo se tratasse.

Existe fracasso e dor nesse desabafo?
Existe tudo. Tento assumir permanentemente o erro e a indecisão, a dúvida constante. Procuro fazer isso pois também faz com que a minha visão das coisas possa evoluir. Nesse sentido, o conflito interior é e será sempre essencial.


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